terça-feira, dezembro 16, 2014

O Natal renasceu

O Natal sempre foi importante na minha casa. Sou filho de um homem que teve uma infância muito pobre e difícil que chegou a roubar fruta nos pomares para matar a fome. O meu pai (provavelmente o meu único herói) trabalhou muito para poupar dinheiro (até rebentar o corpo) e construiu o seu negócio com o que sabia fazer - trabalhar o ferro. Eu já nasci num "berço de ouro" quando a metalurgia começou a dar dinheiro. Na nossa casa houve sempre por parte dele um zelo excessivo para que os filhos tivessem um Natal cheio. Lembro-me de ser pequeno e receber aos 20 presentes de Natal, da mesa da casa de jantar ter de ser coberta de doces (os dois metros de comprido por um de largo literalmente cobertos, ele não queria ver um espaço em vazio sem doces) e do meu pai se emocionar todos os anos. 

Com 14 anos passei a ser eu a fazer a árvore de Natal quando proibi a entrada de pinheiros verdadeiros e passamos para as árvores artificiais. A primeira coisa que ele fazia de manhã era vir ver a árvore, ligar as luzes e ver as decorações de Natal que eu tinha colocado na noite anterior enquanto ele e a minha mãe estavam a dormir. Eu sempre adorei o Natal e metia-me com a cabeça debaixo da árvore a ouvir música e a ver as luzes e as bolas e bonecos de todas as formas e cores.

Há 16 anos atrás, 12 dias antes do Natal, o meu pai morreu. Mas eu tive de fazer o Natal, disse à minha mãe que se desistíssemos naquele ano nunca mais conseguiríamos. Eu devia isso ao meu pai, continuar o Natal e decorar a árvore da forma mais bonita que conseguisse. Choramos todos muito nesse ano: durante o jantar, durante a distribuição dos presentes que tinham sido comprados até à data da morte dele, durante a altura de comer os doces que esse ano deixaram espaços vazios na mesa.

Comecei a tradição de comer o que o meu pai comia todas as vésperas de Natal depois de distribuir os presentes: um pires de arroz doce, uma fatia de bolo rei, um sonho de abóbora e um copo de whisky. O meu irmão e a minha mãe acompanharam-me durante anos até que a minha mãe deixou de fazer os sonhos, porque dava imenso trabalho, até que o arroz doce já não vinha em pires e sim num prato grande mais fácil de transportar para a casa do meu irmão. 

Fui deixando o Natal cair (nunca o meu pai porque enquanto as minhas memórias viverem ele tem carne, osso, cheiro, calor, sorriso, voz e toda a história dos anos que vivi com ele). No ano passado não fiz árvore de Natal. Sentia que o Natal não existia, só o consumismo, bondades sazonais, não percebi que tinha perdido a fé, ou na realidade, não percebi que me tinha perdido a mim e perdido o Natal para o meu pai. Ele que quis que eu e o meu irmão tivéssemos sempre os Natais mais perfeitos.

Entrei este ano esquecido de mim, do que me faz "queimar" por dentro. O ano não foi nada fácil, só trabalho duro e no meio terminei uma relação de anos, tive diversos problemas de saúde. O último dos problemas (o qual falei aqui no blogue) teve um impacto muito grande na minha cabeça. Fez-me perceber onde estou, como estou a viver e o que tinha deixado para trás. Resolvi mudar de trabalho, resolvi dar mais espaço aos amigos, resolvi dar-me a oportunidade de não ser sempre o melhor, resolvi sentir o Natal que sempre trouxe dentro. 

Este dia 24 vou receber a minha família em casa. Hoje vou fazer a árvore de Natal (um mastodonte de 2,30 metros que me acompanha há 12 anos), vou comprar decorações novas e vou planear o que vou cozinhar para a família, os doces que vou fazer. A minha sobrinha, agora filha de pais separados, passa a véspera de Natal connosco. E eu estou com a mesma vontade de dar-lhe um Natal tão perfeito como os que o meu pai me dava a mim. O Natal é amor. Apenas isso. Quero-os na minha casa a seguir almoço (mãe, irmão e sobrinha) vamos fazer doces juntos. Vamos brincar com o gato (que nessa altura já deve ter destruído a árvore 15 vezes). 

Quando formos dormir no dia 24, sei que no dia seguinte acordo no meio das pessoas mais importantes na minha vida. Até pode estar a chover, mas a casa vai estar cheia de luz e espero que esta energia de amor contagie a entrada e travessia de 2015.  O meu pai vai estar lá também. Não seria nada do que sou se não fosse ele. E este ano apetece-me chorar de novo. Mas porque me sinto feliz. Há Natal de novo.



15 comentários:

Francisco disse...

Feliz Natal

Abraço amigo

João Roque disse...

Parabéns, Silvestre por este texto.
Que tenhas o Natal que tão bem mereces.

Ricardo - Uma Outra Face disse...

Queres-me pôr a chorar é isso?
Espero que tenhas todos os Natais como desejas, Silvestre :)

Unknown disse...

Woww, conseguiste fazer alguém que não gosta do Natal (eu), mudar de opinião.
Boas festas!

silvestre disse...

Obrigado. Estou mesmo desejoso por este :)

m. disse...

bravo, silvestre. :) o natal é isto mesmo. embora os que amamos já cá não estejam, temos de nos esforçar e viver a época como eles a celebravam. na minha casa não há árvore, não sobreviveria a 4 gatos, mas há agora uma lanterna de natal :p
a minha mãe gostava das fatias douradas que eu fazia, pedia-mas sempre. agora, mais ninguém gosta. não importa. farei meia dúzia para mim :)
festas felizes para ti e para a família e limão.

Unknown disse...

Fiquei com uma lágrima no olho. Feliz natal.

Tb passava mt tempo debaixo da árvore a cantar as músicas de natal sozinho.

Anónimo disse...

Silvestre,
Muito obrigado pelo teu texto. O mais sentido cartão de natal que recebi. Continuo a festejá-lo, a festejar e deixar que o Menino nasça, com uma casa cheia (se Deus quiser seremos este ano 38 pessoas na noite e no dia!).
Um forte abraço, chora, ri, e sobretudo não percas a esperança
João

Pedro disse...

O Natal consegue sempre trazer sentimentos dúbios e até contraditórios; sobretudo quando há perdas naquilo que se festeja. Mas deve-se também festejar por elas, quando gostariam de ter reunidas à mesa todos os seus. Com árvore, sem árvore, com presentes, sem presentes.

Feliz Natal :)

Unknown disse...

É por textos e partilhas destas que me levaram a regressar à blogosfera. Obrigado Silvestre. Segue daqui um caloroso abraço, muito sentido, e que tenhas um Natal cheio de amor e paz.

Anónimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=LGs_vGt0MY8


m.

Anónimo disse...

Gostei muito do texto, deixaste-me emocionado com a mensagem implícita. Espero que o teu Natal possa trazer a alegria reconfortante do passado e energia para viver os muitos que ainda irás viver :)
um abraço

Renato Miguel Araújo disse...

Excelente texto. E não o digo como homem de letras, digo-o apenas como homem. E posso dizer-te mais: apesar da falta que te possa fazer o teu pai, tiveste uma sorte imensa em o ter como o tiveste enquanto esteve aí!

abraço

Anónimo disse...

Olá Silvestre! Hoje fizeste uma pessoa feliz, sem saberes...gosto tanto da forma como falas do teu pai, da memória viva e legado que deixou. Desejo-te um feliz Natal junto dos que amas :)

Beijinhos,

ARL

silvestre disse...

Obrigado aos que ainda não agradeci, pelas boas palavras.