Não sendo um grande simpatizante de Fernanda Câncio por causa do caso Sócrates - ela é boa jornalista e isenta quando não lhe toca em casa - tenho de concordar que ela faz uma análise muito ajuizada do comportamento hediondo de Cristina Ferreira na gala do Big Brother da semana passada.
Vale mesmo a pena ler, porque é preciso aumentar a discussão sobre o que é violência doméstica e sobre a forma como muitas mulheres a legitimam, no caso Cristina Ferreira (a menos quando em favor próprio).
Cópia Integral abaixo do texto publicado no DN.Fazer Gala da Violência
Para esplendor da audimetria, a TVI decidiu fazer render uma acusação de violência doméstica sobre uma mulher confrontando, ao vivo e a cores, acusado e vítima. E, claro, teve nessa degradação o que queria - o programa mais visto do dia. Isto na era do "politicamente correto", do metoo e da "cancel culture". Olha se fosse na das cavernas.
"Alguma vez tiveste medo?"
A pergunta é de Cristina Ferreira, a diretora de programas da TVI e apresentadora da "gala" deste domingo do programa Big Brother, a uma concorrente. Em causa a sua relação com outro concorrente que fora nesse mesmo dia
alvo de uma queixa pelo crime de violência doméstica contra ela - um crime público, o que significa que qualquer um que não apenas a vítima o pode denunciar às autoridades.
No caso,
a denúncia foi apresentada pelo organismo público encarregado de promover a igualdade de género - a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género - , num duplo simbolismo:
o de frisar o dever de reporte de um crime com esta tipificação, responsável por grande parte dos homicídios cometidos em Portugal, e de este ter sido publicamente e publicitadamente cometido, já que foi através das imagens da interação dos dois concorrentes, divulgadas pela TVI, que dele se tomou conhecimento.
Cristina Ferreira, que várias vezes invocou, no passado recente, o feminismo a propósito de críticas e ataques de que tem sido alvo, frisando que muitos deles ocorrem por ser mulher - o que é verdade -, e que no programa garantiu até acaloradamente "lutar contra a violência doméstica", entendeu encenar, na dita gala, um tribunal, confrontando agressor e vítima com as imagens das suas interações, para a seguir lhes perguntar o que achavam do que viam. A inquirição foi precedida por um discurso inicial da apresentadora/diretora no qual anunciou que considera ter face aos concorrentes "um dever de imparcialidade e de não julgamento de qualquer tipo de comportamento". Esse dever, explicou, deriva da situação de exposição em que aquelas pessoas vivem, ao admitirem ser filmadas 24 sobre 24 horas.
Caberia perguntar se esse "dever de não julgamento" se aplicaria também a crimes, se em causa não estivesse precisamente a acusação de um crime - o que nos leva a concluir que sim, ela quer que concluamos que se aplica. Sucede que é difícil acreditar que Cristina Ferreira, que ali está na quádrupla condição de apresentadora, diretora, administradora e acionista do canal, se afirmasse imparcial e se eximisse de julgamentos caso um concorrente degolasse outro. Pelo que se calhar temos de admitir que ou não leva assim tão a sério o crime de violência doméstica ou acha que no caso não há crime nenhum. O que significa que, longe de ser imparcial e de não julgar, já julgou e decidiu, juíza na causa própria que é o seu programa no seu canal.
Só ter assim decidido explica que considerasse aceitável submeter às perguntas a que submeteu, e perante tão vasta audiência, uma mulher que pessoas muito mais habilitadas que ela (Cristina Ferreira) a reconhecer o crime em causa consideram estar a ser vítima de violência doméstica. Isto se se quiser partir do princípio - é aquele de que quero partir - de que Cristina Ferreira não está tão e apenas somente ralada com as audiências que mesmo admitindo ter ali uma vítima a quereria submeter, sob o álibi da "liberdade total" no contexto de um programa em que está 24 horas fechada com ele, à degradação de a colocar ainda mais sob o domínio do seu agressor ao afirmar publicamente que as suas manobras de controlo, a sua manipulação e agressividade física são manifestações de amor - submetendo-nos assim a todos à banalização e à desculpabilização do crime e à entronização do criminoso.
Não; acredito que simplesmente Cristina Ferreira não saiba o que é a violência doméstica, e, que como tantas outras pessoas, incluindo até, como é conhecido, juízes, ache que se não houver ossos partidos, hematomas e hemorragias, e se a vítima disser que está tudo bem, está tudo bem e não há crime algum. Que não saiba, como tão bem explicou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em alguns acórdãos recentes, que a violência doméstica é tortura porque visa a humilhação, o rebaixamento e o controlo absoluto da vítima, transformando-a em objeto à sua disposição.
Aliás, a apresentadora/diretora fez questão de afirmar, para justificar o facto de o acusado de violência doméstica não ter sido, como era exigido pela CIG e por tantos outros, retirado do programa, que todos os concorrentes estão a ser "avaliados diariamente" por uma equipa de médicos. Com esta afirmação, que repetiu por duas vezes, Cristina Ferreira quis certificar que não houve crime, que nenhum mal estava ali a ser causado à concorrente em causa, e que é tudo macaquinhos no sótão e "ódio" - usou esta palavra - de quem denunciou.
Para além de levantar assim uma questão deontológica interessantíssima à Ordem dos Médicos - quem raio são estes clínicos aos quais a produtora Endemol e o canal TVI imputam a decisão sobre a manutenção ou não de um acusado de violência doméstica num programa - Cristina Ferreira tornou assim claras, clarividentes, várias coisas.
Uma é que tudo o que disse sobre não se arrogar "julgar" é mesmo uma grande treta. Tão grande a treta que quem como eu seguiu ontem - por uma vez na vida, por razões profissionais, e para nunca mais, tal o nó nas tripas - toda a emissão da "gala" até ao fim teve oportunidade de ouvir a voz que faz de "grande irmão", ou seja, de ente que tudo vê e ouve, assegurar aos concorrentes que restaram após a expulsão ritual do acusado "por vontade do público" (claro, era preciso "entregar a decisão aos portugueses" para fazer render o suspense) que a concorrente alegadamente vítima estaria "com certeza" disponível para testemunhar a favor do expulso no eventual inquérito criminal.
O que nos leva a outra das evidências: ao questionar a concorrente sobre se se considera vítima, Cristina Ferreira sabia o que ela ia responder - jamais correriam, ela e o canal, o risco de serem acusados em direto de propiciarem, com a sua inação, um crime continuado.
E, por fim, que, alinhando com o discurso habitual dos agressores - que se queixam sempre de serem uns inocentes incompreendidos alvo de vinganças ou conspirações - Cristina Ferreira quis transformar a denúncia de que o concorrente e portanto o programa foram alvo numa questão de "ódio". Só faltou dizer a quem. Mas basta dar uma volta pelas redes sociais e ver as respostas dadas a quem denunciou para perceber: claro que é "ódio aos homens", "falta de peso", "frustração de mal amadas" - os insultos de sempre às feministas. "De puta para baixo", diria a Cristina Ferreira que vende livros à que faz gala da violência doméstica. Alguma vez terão falado?