A minha vizinha Palmira foi viver para a casa ao lado da minha tinha eu 20 meses. Quando a minha mãe precisava de fazer algo, deixava-me com esta vizinha por algumas horas porque ela gostava muito da nossa família. Quando eu tinha 4/5 anos deixa-me brincar com os brinquedos do filho, uns 11 anos mais velho que eu, que guardava religiosamente para os netos que havia de ter. Eu não estragava nada e arrumava tudo na gaveta, depois preparava-me o lanche iogurtes ou papa de banana e bolacha.
Trabalhava imenso para ter uma vida melhor. O marido tinha zero ambição e ela queria mais. Tinham uma péssima relação com episódios de agressão. Era muito nervosa e teve 3 esgotamentos nervosos ao longo da vida. O meu pai, porque achava que ela era uma mulher de armas propôs dar-lhe uma quantia de dinheiro para ela comprar mercadoria e vender. Pagaria quando pudesse (o meu pai era este tipo de homem, permitiu a bastante gente que se lançasse na vida por acreditar neles e achar que mereciam). Assim começou a vida dela como vendedora, primeiro roupa, depois ouro e conseguiu vencer na vida.
Era uma mulher humilde no vocabulário e no trato, o que não agradava à mulher com quem o filho casou (que infelizmente se esqueceu de onde tinha vindo a família dela). Quando chegou o tão desejado neto (uma menina), ela podia ver a neta uma vez por semana durante uma hora e pouco e se o filho se atrasava, às vezes eram 10 ou 15 minutos, em que ela andava a fazer macacadas e a rebolar no chão com a miúda. Mas sabiam a pouco e ela sofria muito por isso. Chorava bastante por esse facto e eu não conseguia compreender porque tinha de ser assim.
Já eu tinha os meus 18 anos e ela, quando os meus pais estavam fora ainda vinha perguntar se eu precisava de alguma coisa e lá vinha com uns iogurtes de banana na mão (os que eu comia quando era pequeno), que deixava ficar. Era devota do Dr. Sousa Martins e ofereceu-me uma medalha para eu colocar na carteira, perdi-a mas não lhe contei. O marido morreu de cancro no fígado, ela disseque rezou ao Dr. Sousa Martins para ele nunca ter dores. Não sei se foi pela fé dela, mas ele nunca teve dores, mesmo quando os médicos diziam que era impossível ele não as ter. Confesso que fiquei na dúvida.
Andava sempre com umas mãos bem tratadas e bem arranjada. Umas unhas grandes pintadas de vermelho, as suas pulseiras de ouro, o cabelo sempre arranjado e a roupa toda janota. Sempre num asseio e com um bom gosto que foi adquirido e trabalhado com os anos. Contudo, os anos de nervos, de trabalho duro, de sofrimento fizeram a cabeça vergar. Começou a ter mais problemas, aos 70 anos já se perdia. Estava em Lisboa e não sabia onde morava, várias vezes a vieram trazer a casa porque ela sabia descrever o monumento lá no nosso sítio. Mas piorou, as conversas deixaram de ter nexo e ela deixou de sair de casa.
Quando ia visitar a minha mãe, ela dizia-me que a Palmira estava muito mal. Mas quando estava ao portão lá a ouvia chamar o meu nome. Ia ter com ela, estava confusa, mas não se esqueceu de mim do meu irmão, da minha mãe e do meu pai. Já não era a mesma, o cabelo por pintar, as unhas roídas e meio sujas, a roupa cheia de nódoas, o jardim que ela cuidava como um paisagem de um quadro num desalinho. Não importava o quão longe estivesse, ela gritava sempre o meu nome e eu via a mão a dizer-me adeus. «Gosto muito de vocês, nunca me esqueço de ti».
Estive em casa da minha mãe e o quintal da vizinha Palmira parece uma selva. E ela deixou de dizer adeus. O filho levou-a para um lar porque ela já deixava o gás ligado, e era um perigo para ela mesma. Ninguém sabe para onde a levou. A minha mãe falou com a cunhada dela que também não sabe onde ela está. Parece-me tudo, no mínimo estranho.
Não sei porquê hoje a vizinha Palmira não me sai do pensamento. Terá 76 anos penso. A mente foi embora. Mas eu retenho apenas que foi uma grande mulher. Lutadora. Amiga. Não sei o que foi feito dela. Não sei se morreu. Achei que devia falar dela. Foi sempre boa para mim e para os meus. E teve sempre um sorriso verdadeiro para nós, mesmo quando a cabeça dela já não a deixava ser quem era na totalidade. Sei que esteja ela onde estiver eu estou no seu coração. Ela definitivamente está no meu.
16 comentários:
Gostei muito da "ode" a tua vizinha Palmira.
E tu como vais andando, rapaz?
Zeg
Há pessoas especiais com quem nos cruzamos ao longo da nossa vida e ter uma vizinha amiga, interessada e genuína é de louvar.
Fizeste bem partilhar, escreveste o que sentias. É sinal que ela nunca te foi (e é) indiferente.
Belíssimo texto :)
Uma doença é sempre triste. A falta de cuidados pela família ainda o é bem mais....
há pessoas que nos tocam muito, deixam a sua marca indelével, os anos passando, a mente e o corpo quebrando-se, mas o que somos hoje a elas devemos. pessoas que, na opinião delas, pouco fizeram, apenas uma ajuda, um estar disponível, mas quem recebeu jamais esquece. mais que gratidão, é uma espécie de amor, como referes no fim.
@Zeg: Hoje não me saia da cabeça. Tu ainda te deves lembrar dela, verdade? Eu ando mais ou menos a perna continua sem responder, mas apanho sol nas 2h horas de passeio que tenho de dar. Já não é mau. Pelo menos a cabeça está aliviada, ou mais aliviada.
@NLO: Indiferente nunca será. Estou muito grato pelo amor dedicado.
@NLO: Indiferente nunca será. Estou muito grato pelo amor dedicado.
@pedro: obrigado. saiu do coração.
@horatius: é uma caca veres a degradação psicológica de uma pessoa.
@margarida: enquanto for vivo não me esqueço da Palmira e do que fez na vida. Tenho-lhe muito carinho.
E pronto conseguiste fazer-me chorar. Espero que estejas contente.
@namorado: também chorei a escrever, tenho saudades dela.
A vizinha Palmira, como tantas outras pessoas, tornam-se verdadeiramente parte de nós. De certa forma, ela está sempre contigo (mas sim, devias procurá-la).
@umcoelho: já tentamos
Eu tenho uma espécie de Palmira na minha vida.
Tem 89 anos, está no seu juízo perfeito e vou sabendo dela...
Ajudou-me a criar e é para mim como alguém da minha família.
Por isso me tocou tanto esta tua história.
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