Em 2002 um gatito com cerca de 4 meses saiu de um canavial e ficou encostado à bota do meu irmão - a passar naquela rua por acaso e a detestar gatos. Ao ver que o gatito estava em mau estado foi ficando, mas à espera que alguém passasse para ele poder ir embora dali, ocupando-se esse alguém do bicho.
Acontece porém que ninguém passou e o meu irmão telefonou-me a dizer que não sabia o que fazer porque o gato estava com um ar doente e ele não queria ficar com a morte do gato na consciência, e já estava ali há 25 minutos sem passar ninguém. Como o meu irmão era recém casado com uma "cat lover" e o gato era preto (e o meu irmão gótico), eu aconselhei-o de forma a que ele resolveu levar o gato ao veterinário e fazer uma surpresa à esposa. Na altura, eu também não gostava de gatos e mal sabia eu que um dia também iria estar nesta situação.
Ao chegar ao veterinário, descobriu-se que o gatito teria efetivamente 4 meses, estava muito subnutrido, tinha uma infeção enorme na boca, tinha a cauda partida em dois lados e apesar do meu irmão ter decidido chamar-lhe Gótico, o gato não era todo preto (estava era incrivelmente sujo). Depois da extração de centenas de pulgas e de vários banhos descobriu-se que ele até tinha a barriga e uma das patas brancas.
Era um gato muito autónomo. Não era particularmente afetuoso, mas tinha uma relação muito especial com o meu irmão que o ensinou a dar beijinhos no nariz através do comando "Tico dá amor". O meu irmão também lhe chamava Gorda e ele lá vinha (às vezes havia confusão porque o meu irmão também chamava Gorda à minha cunhada e vinham os dois).
Nunca deixou de ser um gato de rua. Tinha sempre a janela da cozinha aberta e saía e voltava quando lhe apetecia, às vezes trazendo lagartixas, pardais ou ratos mortos de presente. Outras vezes ausentava-se por uns dois/três dias e lá voltava à sua casa como se nada se passasse.
Quando a minha sobrinha nasceu há quase 12 anos atrás ele não se atrevia em tocar em nada que fosse do bebé. Olhava-a com um certo espanto e acho que não gostava do cheiro a bebés. A minha sobrinha cresceu e com uns quatro anos passou a dar-lhe uns abraços que o esmagavam, mas que ele respeitava sem lhe fincar o dente (como fazia a outros que o chateavam) apesar de primeiro tentar fugir a esses abraços.
Os anos passaram e o Tico tornou-se velho, tinha cataratas, estava meio desdentado e a partir dos 15 anos começou a ser muito lamechas, adorava festinhas e pedia-as, ia à rua, mas ficava com os olhos com infeções ou às vezes levava porrada de gatos mais novos. A partir dos 18 anos o meu irmão achou melhor deixá-lo em casa, já não via bem, falhava a janela às vezes, e era melhor mantê-lo em "prisão domiciliária".
Desde Outubro que ele começou a querer sair para rua constantemente, passava as noites a miar com um miado altíssimo que não deixava dormir o meu irmão. E sempre esse querer fugir, quando não estava dormir no sofá. No dia 15 de dezembro foi um homem a casa do meu irmão para cortar as árvores no quintal. Enquanto o meu irmão trabalhava no escritório, o dito senhor não teve cuidado e o Tico aproveitou para sair de vez.
Eu só soube na passagem de ano quando não vi o Tico no cobertor azul do sofá, nem veio com a cabeça pedir festas, nem o meu irmão disse "cuidado para o gato não fugir". O Tico foi sabe-se lá para onde. O meu irmão andou à procura, os vizinhos, mas nada. Ele trazia uma medalha na coleira com o telefone do meu irmão, mas ninguém telefonou. Suponho que o Tico já não faz os 19 anos connosco, nem os faz de todo.
O Tico nunca esteve fora 20 dias. Algo em nós diz que ele morreu e eu nem consigo expressar a pena que sinto. Dá-me para chorar quando penso nele. Porque era muito velhote, porque deve ter morrido com fome e ao frio, sabe-se lá onde. Não sabemos se foi porque se desorientou ou porque era mesmo a vontade dele.
Há quem diga que os animais partem para longe de quem os acolhe quando sentem que vão morrer. Se foi assim, eu queria que ele tivesse morrido na nossa presença, com festinhas na cabeça, com conforto. Ele fintou a morte no dia em que conheceu o meu irmão e quase 19 anos depois deve tê-la encontrado em qualquer lado. Não me conformo com a ideia de não termos podido ajudar, de não saber o que se passou, de não ter a certeza de que morreu sem sofrimento.
Nunca fomos grandes amigos até ele se ter tornado um velhote carente. Mas o que é certo é que me deixou muitas saudades e uma enorme mágoa por ele não ter estado com a família nos seus últimos momentos.
6 comentários:
Pelo que sei, no caso dos gatos eles escolhem mesmo ir morrer sozinhos. Tive inúmeros gatos e vi pelo meu último, o Napoleão, que é mesmo assim. Velho e sem forças, mas mesmo assim procurou esconder-se onde estaria sozinho e percebi: ele vai para ali (perto de um monte de lenha que os meus pais têm arrumado) e vai para partir. Dei uma festinha, despedi-me e afastei-me. Horas depois...
Não é bom, ou pelo menos reconfortante, pensar que morreu à maneira dele? Dei-lhe a paz que queria. A sua última vontade.
Queres saber o mais curioso? O Napoleão, um gato da cidade que foi para o campo, viveu mais tempo que todos os outros gatos e durante largos anos foi o rei dos gatos ali na aldeia (as vezes que tratei dele porque andava às lutas pelo território, foi inclusive atropelado, mas sobreviveu). Nunca em tantos anos deixou descendência, pelo menos que saibamos e da forma que o fez: Poucos meses antes desta morte acontecer, deixou descendência (era um gato, lembro) na casa dos meus pais, literalmente uma ninhada. Três gatos super parecidos com ele.
Isto não é maravilhoso?
Se pensarmos, o Gótico, andou meses a pedir para ir à sua vida/morte. E foi, em paz e talvez feliz.
Agora quem vai ali chorar sou eu. Um abraço!
Obrigado pela partilha Ricardo. É uma história bonita. E fico feliz que tenhas podido despedir-te, e saber que ele estava bem antes desse momento - sem sofrimentos aparentes.
um abraço!
Muito triste. :(
Já tentaram ver online no facebook ?
Muitos fogem para o calor dos motores de carros e são levados para zonas bem longe. Depois ficam nas colónias de gatos que são alimentados pelos vizinhos da zona.
Isto já aconteceu inúmeras vezes com os gatos aqui do bairro. Alguns foram resgatados a bem mais de 5 km de distância.
Li o texto e várias vezes me senti triste e impotente... cheio de vontade de chorar.
Tive uma situação semelhante e demorei alguns anos a ultrapassar, se é que o fiz. Era uma gata chamada Belmira (don't ask) que viveu comigo desde os meus dez até aos trinta anos e ainda hoje penso nela e sinto-me mal por não saber como partiu, se sofreu, se ficou desconfortável. Pode ser egoísta mas eu queria ter estado lá para ela a dar conforto e carinho como toda a vida dela demos um ao outro.
Quando saí de casa dos meus pais levei-a comigo e pensei que não se habituasse mas deu-se lindamente ao novo ambiente e viveu queles dez anos sempre feliz. Continuava a sair pela janela da cozinha, que eu abria quando saíamos da cama e eu ia fazer o café, para ela poder fazer o seu passeio diário da manhã depois disso.
Voltava sempre uma ou duas horas depois até que ficou mais velhinha e doente e ela própria não se sentia em condições de ir... os últimos dois anos da vida dela tomámos o pequeno almoço juntos. Eu na mesa e ela na bancada... à janela a olhar para a rua.
No entanto, a janela tinha de ser aberta da mesma maneira porque ela miava até eu o fazer. Não saía mas gostava daquela fresta a deixar entrar o ar fresco da manhã e ficava ali à janela o tempo todo que eu estivesse por ali até sair para ir trabalhar.
Depois dava-lhe umas festas, fechava a janela e ela vinha comigo até à porta e depois de eu sair lá fazia a sua vidinha. Já via muito mal e tinha muita dificuldade em movimentar-se com a mesma agilidade, tinha alguns problemas ósseos mas sempre com o mesmo espírito. Um dos dias acordámos e ela vem comigo para a cozinha, como sempre, faço o pequeno almoço, comemos e enquanto me visto e preparo para sair, volto à cozinha e não a vejo à janela... até hoje não a voltei a ver
Não lhe dei aquela ultima festinha consciente disso, não sei para onde foi, quanto tempo resistiu e como foi. Senti-me mal porque embora muitos me digam que os gatos fazem isso... eu não estava preparado.
Sinto ainda hoje muitas saudades dela.
@magg: Desapareceu mesmo.
@ricardo pereira: a pior parte é mesmo esse "e se"
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