quarta-feira, junho 01, 2022

Metade de uma vida

Atingi a idade em que metade da minha vida foi passada sem o meu pai. Porquê escrever hoje sobre ele? Porque é o dia da criança e enquanto fui criança ele não foi bom para mim; fez-me até sofrer bastante. Aos 14 anos ganhei o respeito dele por mim enquanto homem - e tudo mudou. Começou a construir-se uma relação para lá da raiva e da dor e comecei a ver quem era o homem que tinha por pai. Percebi muita coisa que não passa pela cabeça de uma criança e percebi que, afinal, ele era um homem extraordinário. Quando me tornei homem tive ainda mais essa a certeza, mas nessa altura ele morreu e acabei por não lhe dizer muito do que gostaria de ter dito. 

Ninguém é perfeito. Ele não era polido, dizia palavrões, falava alto, não sabia expressar sentimentos (correndo o risco de dar a entender que era era bastante sensível, preferia guardar para ele as suas próprias inquietações, desilusões e medos) e enfiava o guardanapo no colarinho. Mas este homem teve  um dia um sonho, criar um família que tivesse tudo o que ele nunca teve - incluindo um pai que providenciasse para os filhos. 

Amava-nos muito, mas nessa luta cega de ter dinheiro para nos dar-nos uma casa, um curso, um carro e ainda deixar todos bem de vida após a sua morte, esqueceu-se de estar presente e de mostrar que nos amava muito. Quando estava, estava rabugento, cansado, sem paciência. Nas férias era uma pessoa diferente, mas era-lhe mais fácil estar próximo do filho o que os rapazes fazem e que por isso exigia menos esforço. Isto até aos meus 11 anos. Depois reformou-se e tornou-se bem mais calmo.

Os 10 anos que tive com o meu pai depois de termos feito as pazes como pai e filho foram bons. Havia respeito. Eu passei a exigir-lhe muito mais, porque também percebi que ele gostava de me ver lutador. Por isso quando ele morreu, só tinha uma questão: será que ele sabia o quanto eu gostava dele? Por sermos os dois teimosos e por ele não conseguir verbalizar o amor dele eu também achei que teria de fazer igual, apesar de ser capaz de o fazer. Não obstante, uns dias depois perguntei à minha mãe (a pessoa com quem ele era efetivamente capaz de falar sobre tudo) e ela disse que  sim, que ele sabia.

Costumo dizer que não tenho heróis com a excepção do meu pai. É que na realidade ele teve uma vida heroica, de superação, foi primeiro um sobrevivente e depois um conquistador. Embora não dissesse que gostava de mim, ou me desse alguma atenção quando eu era pequeno, cuidou impecavelmente da nossa família e espalhou atos de generosidade por todo o lado. Era um homem bom. 

Há uns dias um amigo disse-me que eu branqueei o meu pai, que não tenho a minha relação com ele resolvida, porque ninguém fala assim tão bem de um pai. Não sei como poderei explicar ao meu amigo, que eu não o branqueei, eu fui (re)descobrindo o meu pai e depois compreendendo o que (re)descobri.

O meu amigo também disse que coloco o meu pai acima da minha mãe. Novamente um erro. A minha mãe não teve a vida heroica do meu pai em grandiosidade de feitos, mas talvez tenha feito a coisa mais grandiosa: a abnegação. A minha mãe tem uma qualidade muito bonita - saber amar. Ama totalmente, incondicionalmente e com dedicação. Amou assim o marido, o pai, os filhos e agora a neta. As pessoas que ama têm muita sorte por ter esse amor que não exige nada e que nutre como poucas coisas.

O meu pai dizia "posso ter feito muita coisa na vida, mas não teria conseguido nada sem a minha mulher que foi o melhor copiloto que eu poderia ter desejado".  A minha mãe foi a "força motriz" do herói, aparentemente em segundo plano, mas o pilar de todas as coisas. 

Não sei como explicar ao tal amigo que apesar da minha mãe nunca me ter magoado e sempre me ter protegido, o meu pai continua a ser a pessoa em que eu gostaria de me tornar. Eu percebi o meu pai e as dores passadas ficaram no passado. Se não o tivesse percebido não o usaria como compasso moral para a vida. Não obstante, deixo sempre uma nota de rodapé, quero ser capaz de amar e ser amado como a minha mãe ama. 

Nem toda a gente que nos ouve (ou que nos lê) compreende exatamente o que queremos dizer. Cada leitura é uma história de acordo com a cabeça de cada um e com as suas experiências de vida. Às vezes penso se por ser tão aberto não acabo, eu, por dar material passível de gerar mal entendidos. Se calhar presto um mau serviço aos meus pais, quando falo nas dificuldades que existiram num certo período da minha vida. 

Talvez deva falar menos (é uma das coisas que tenho pensado ultimamente), talvez as minhas palavras sejam uma espécie de Gremlin - podem gerar a confusão junto de quem não compreenda a sua natureza. Não obstante, uma coisa é certa - seja eu mal compreendido ou não - sou filho de um bom homem e de uma boa mulher que fizeram o melhor que sabiam e podiam para nos fazer florescer. À luz do que sei tive muita sorte.

7 comentários:

Francisco disse...

Uma bela homenagem que fazes aos teus pais

Abraço

silvestre disse...

obrigado! acabou por ser apenas uma reflexão :)

iLoveMyShoes disse...

(não sei se o meu comentário anterior seguiu... deu erro).
Dizia que me revejo em muito do que escreves sobre o teu pai.
As relações familiares são muitas vezes pouco compreensíveis...

Ex-Namorado disse...

Quem lê o que escreves, interpreta. Muitas das vezes de forma errada.

Bonito texto, que se traduz numa bela homenagem ao teu pai (e mãe).


Feliz Dia da Criança atrasado!

Anónimo disse...

Eu não sei se o comentário vai entrar com a minha conta, mas sou o Mark. Não sei o que se passa com o Blogger que me dá erros sucessivos nos comentários.

Eu vivi 34 anos com a minha mãe. Infelizmente não tivemos mais tempo. Sei que a nossa relação foi profunda, que falámos sobre tudo, que nada ficou por dizer. Dou por mim, frequentemente, em diversas situações, a saber o que ela me diria ou quereria que fizesse.

A perda de uma mãe ou de um pai é das piores situações por que passamos. Eu senti um abalo fortíssimo, mitigado pelo apoio maravilhoso que tenho do meu marido. Ainda assim, é um abalo, talvez o mais forte que podemos ter, ou dos mais fortes. Ninguém se prepara para a morte, porque nas nossas sociedades não se fala de morte, e menos ainda da morte de quem se ama profundamente. Preferimos nem pensar no assunto. Acontece que a determinado momento nos vemos confrontados com a realidade dessas perdas, que há que saber gerir, duma ou doutra forma, e isso depende de cada um.

silvestre disse...

@shoes: pelo menos podem demorar anos a revelar a sua importância e significado.

silvestre disse...

@mark: tal e qual. é um trabalho para o resto da vida.