sexta-feira, setembro 04, 2009

A Bisavó Beatriz

Hoje voltei a ver o mesmo rapaz, nos seus vintes, a pedir na Praça e Espanha. Tem um corpo porreiro, definido e só hoje reparei que tem um braço amputado pelo meio do antebraço. Só hoje percebi que estava a pedir esmola. Não consegui deixar de me lembrar da minha bisavó Beatriz, que também tinha um braço amputado da mesma maneira.
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A bisavó Beatriz teve um tétano aos 14 anos e teve de amputar parte do braço. Casou aos 20 e aos 28 tinha 4 filhos e ficou viúva. O meu bisavô morreu de pneumonia. A bisavó Beatriz, sem apoio familiar e sem nunca ter trabalhado, começou a lavar roupa nos chafarizes públicos e a fazer limpezas em casa de gente rica. Para isso, por vezes, tinha de deixar a filha de 7 anos a tomar conta dos irmãos mais novos. Por duas vezes, quando chegou a casa, viu os filhos a serem enfiados na carrinha da Mitra. Vivia numa casa em que o chão era de terra batida, as condições eram as possíveis para o dinheiro que ganhava. Um homem que queria casar com ela usava a ameaça de lhe colocar os filhos num orfanato para a fazer ceder. Ela não cedeu. Dizia que só teve um amor e não voltou a casar. Porque era muito bonita (intensos olhos azuis e cabelo negro), pretendentes não faltaram nesses anos em que o trabalho ainda não lhe tinha roubado o viço. A resposta dela foi sempre a mesma. Não.
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Criou os 4 filhos e não deixou de trabalhar até morrer. Quando o corpo já não dava para trabalhos fortes passou a vender caramelos, chocolates, amendoins e outros, numa bancada em frente à porta dela. Os míúdos conheciam-na pela «maneta». Morreu aos 87 anos com vários orgulhos: foi fiel ao amor pelo marido, os filhos viviam bem e o seu cabelo atado num carrapito continuava negro e forte. Para ela não ter parte de um braço nunca foi uma questão.

6 comentários:

Provocação 'aka' Menina Ção disse...

Que bonito! Que mulher linda e forte! Adorei saber desta história de vida. E das árvores surgem os frutos. O reconhecimento dos nossos descendentes é das melhores pretensões que um ser humano pode ansiar após a sua ausência terrena.

Anónimo disse...

Silvestre, tenho a dizer-te que gosto muito da forma como contas as histórias dos teus familiares. Esta teve o mesmo efeito que a da tua tia Isabel (não estou certo se era este o nome da tua tia falecida recentemente). Pois que gosto. São retratos sentidos sem contudo serem lamechas.

Zeg

FacAfiada disse...

Parabéns!
Pela Bisavó, pela simplicidade, pela não arrogância, pela nudez do sentimento! Muitos parabéns!
Grande senhora!

silvestre disse...

@zeg: Sim, era tia Isabel e tu ainda a conheceste. Qual seria a reacção se eu falasse da avó materna..lolol. Ainda te lembras da peça, não?

silvestre disse...

@facafiada: obrigado. :-)

Jo disse...

Que bisavó e que mulher! São destas pessoas que devemos ir buscar o seu brilhinho quando partem. É também isso que nos deixam e que se pega a nós de forma tão boa se deixarmos...