segunda-feira, janeiro 08, 2024

Histórias de gente rija

Diz que a necessidade aguça o engenho, mas em alguns casos endurece as emoções. Nos tempos em que a pobreza ainda apertava, a mãe do Beto apanhou óleo na estrada e despistou-se capotando com o carro, que ficou sem remendo. Deixou o filho mais novo no hospital para ver se estava tudo bem e foi a casa lavar o sangue da cabeça para ir trabalhar, mesmo assim, porque precisava do dinheiro do dia para meter comida na mesa. Independentemente de poder ser intensa e mandona, que é, respeito imenso pessoas que nunca olham para trás. Que têm nervos de aço. Às vezes pergunto-me se, nesses tempos complicados, ela seria sempre assim ou se choraria sozinha depois de ter os filhos a dormir. Haveria um momento de fragilidade?Não faço ideia. Os meu pais, apesar de muito mais velhos, são também desta cepa.  

Quando a minha irmã morreu a minha mãe demorou 3 semanas até derramar uma lágrima, porque estava sozinha com o meu pai em Angola e tinha de apoiar o meu pai que trabalhava 14 horas por dia. Muitos anos depois, quando o meu pai morreu, eu e o meu irmão estávamos a acabar o curso e entre dezembro e junho ela esteve sempre ali ao nosso lado a zelar pelo nosso percurso. Quando terminamos a universidade, ela despencou. Permitiu-se sentir e ficou de rastos durante mais de 2 anos. Nessa altura, a realidade da minha mãe era diferente da realidade da mãe do Beto, tínhamos uma boa situação financeira. A minha mãe não ia precisar de trabalhar e agora era connosco, arranjar trabalho e fazer a nossa vida. 

No caso da mãe do Beto, apesar dos tempos sem dinheiro irem longe - trabalha seis dias por semana e tem desafogo - pergunto-me se algum dia ela vai parar para respirar e se, nesse momento, lhe vai saltar à flor da pele os anos de tristeza e sacrifício ou se vai ser sempre assim forte e pronta para a luta. Desconfio que a armadura se colou ao corpo para sempre, ou simplesmente as pessoas que trabalharam desde crianças e/ou sem o "luxo" de poder sentir são mesmo assim: rijas.

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde. Acho que as pessoas que trabalham desde crianças são mesmo rijas. Se calhar concentram-se mais no essencial e ficam mais resignados, mas não necessariamente infelizes. Os meus pais eram assim, e valorizavam e agradeciam muito, o pouco que tinham. Aproveito para desejar, um bom novo ano. Gosto de o ver interpelativo, como sempre, mas sereno. Envio um abraço.

silvestre disse...

Obrigado e bom ano!

Francisco disse...

Numa altura de Princesas e Unicórnios e onde temos tudo de mão beijada, damos outro valor e muito a pessoas que não se deixam ir a abaixo (mera opinião minha)

Tens uma sogra de muito e muito valor :)

Abraço

silvestre disse...

Subscrevo o que dizes. Acho mesmo a minha sogra uma mulher de armas e tem sido um mãe estupenda (o lado mau da coisa é que tem de andar tudo à música dela, eu inclusive heheheh)