terça-feira, agosto 11, 2009

A tia Isabel

A minha tia Isabel morreu ontem. Tinha 84 anos, era a irmã mais velha do meu pai e era a tia de quem eu mais gostava. Nos últimos 4 anos apenas a vi 2 vezes. É uma estupidez, mas fiz um esforço para me lembrar do porquê. A minha tia ajudou a criar o meu pai que era 10 anos mais novo que ela. Quando o meu pai morreu há quase 11 anos atrás ela ficou muito abatida. Não conseguiu voltar à nossa casa e sempre que me via a mim e ao meu irmão chorava imenso porque não conseguia deixar de se lembrar do irmão. Era difícil para ela e para nós por a vermos tão triste. Acho que isso ditou a distância. Falava apenas com a minha mãe por telefone.
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A tia Isabel era daquelas pessoas que gosta muito das pessoas que gosta. Que dava abraços muitos grandes e aqueles beijos que parece que nos querem devorar de tanto nos querer. Acho que por isso até aos 2 anos eu tive medo dela. A minha mãe diz-me que eu olhava para ela e quando ela esticava os braços para mim eu começava a chorar. Depois fiquei maior e comecei a gostar dela porque ela viajava muito e trazia-me sempre doces de outros países e brinquedos diferentes. Quando cheguei aos 12 anos a tia Isabel já não era rica e já não me oferecia coisas caras e exóticas. Aí percebi que gostava dela porque ela era muito boa pessoa, estava sempre disponível e energética para ajudar em tudo (o que condizia com a figura dela que era uma mulher alta e robusta) e gostava muito da família. Isto comove-me pessoas que gostam da família e que exercem esse gostar.
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A tia Isabel não guardava rancores demasiados. Era muito cristã e achava que tudo tinha de ser perdoado na medida da possibilidade de cada um. Tinha de se fazer um esforço para perdoar os que eram mais fracos de espírito. Ela conseguiu perdoar o pai (meu avô) por anos de maus tratos aos filhos e à mulher. Aí descobri-lhe outra faceta, o humor. A tia Isabel dizia «o vosso avô não era mau homem. Ele só era mau com o vinho, o problema é que estava quase sempre bêbado» e ria de seguida. Quando o pai dela morreu ela chorou, o meu pai (com 16 anos na altura) sentiu-se aliviado. A tia Isabel contava a rir como durante anos a fio nunca teve direito a tomar banho com água limpa. Eram 4 irmãos e apenas uma banheira de madeira com água. A minha avó começava os banhos do filho mais novo para o mais velho e a ela calhava-lhe a água onde já tinham sido lavados 3 irmãos. Ela dizia «até tive sorte em não ter ficado muito encardida».
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A tia Isabel ficava muitas vezes a tomar conta de mim e do meu irmão quando os meus pais iam de férias e nós não queriamos ir. Se alguém na família estava doente e precisava de cuidados continuados, a tia Isabel estava na linha da frente para tratar de tudo. Também estava na linha da frente para atirar uma rebecada das boas se assim achasse necessário e depois colocar uma carantonha que só desaparecia à custa de muitos mimos. Quando a tia Isabel se chateava, sai de baixo. A família do meu pai tem toda o mesmo olhar furibundo que nos fuzila em dois tempos (o meu irmão então é um especialista) eu como saí à família da mãe estou em desvantagem.
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A última vez que última vez que vi a tia Isabel foi há um ano e meio talvez. Fui visitá-la a casa da filha onde passava os fins-de-semana. Estava sempre a sorrir com um ar muito pacífico, desde 2006 que tinha começado a ficar confusa e incapaz de tomar conta de si. Estava num lar, mas muito contente. Gostava muito da equipa de funcionários todos na casa dos 20 anos, nomeadamente de um rapaz que tinha o meu nome. Quando a fui visitar disse-me que tinha um amigo com o meu nome. Que a levava a passear à rua, que conversava com ela e que contava anedotas. Foi a primeira vez em muito anos que olhar para mim não a dirigiu ao meu pai. Não sei se ela estaria a pensar que ele estava vivo de novo. Disse-me no fim que gostava de ter um cãozinho e ir passeá-lo à rua. Já não sabia que idade tinha. Estava confusa, mas a doçura era a mesma.
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Ontem soube que a tia Isabel tinha morrido. Fiquei muito triste. A tia Isabel era quase uma instituição. Hoje será o velório, amanhã o funeral. Vai estar lá muita gente porque a tia Isabel tinha muitos amigos. Amanhã não vou ao funeral. Não quero ver o caixão descer à terra. Quero pensar que a tia Isabel vai estar no lar na mesma, com o seu sorriso doce, a ensinar a cozinhar (porque era uma cozinheira extraordinária) e a ouvir anedotas dos seus novos amigos de 20 e poucos anos.
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As pessoas partem, o amor não vai a lado nenhum.

10 comentários:

Anónimo disse...

Os meus mais sentidos sentimentos. E sem dúvida que devemos guardar as coisas mais doces e as memórias mais felizes dos nossos entes queridos.

Beijinho

AR

ABianchi disse...

Deixaste-me c um sorriso apos ler o teu post. Bonito testemunho. de certeza q ela tb vai gostar =)

Anónimo disse...

Acho que fizeste uma sentida homenagem a uma tia fantástica!

Aqueles de quem gostamos ficam sempre entre nós...

Rui Clemente disse...

O amor fica. Sempre. Guardadinho dentro de nós. E a tia Isabel teve aqui uma homenagem lindíssima, como só o sobrinho poderia prestar.

desenhos disse...

Isabel deve ser uma pessoa bonita. :]

Eu também não gosto de funerais e ainda só fui a um velório. Sinto que é um momento muito íntimo e fico enervado com a presença de muita gente e essa falta de intimidade. Mas como também tenho de respeitar os outros prefiro não ir.

A tia Isabel até parece que podia ser minha tia, e faz-me sentido que se preste homenagem desta forma, é curioso ver que agora ainda há mais gente a gostar dela :] Que grande senhora.

Célio Cruz | Sweet Gula disse...

Bonitas as palavras que dedicaste à tua tia Isabel, neste post. Se ela as pudesse ler, de certeza que iria ficar bastante contente por saber que ainda tinha um sobrinho que a amava. E é isso mesmo, as pessoas partem, faz parte da vida, mas o amor, esse, fica sempre dentro de nós!

Anónimo disse...

Acho que ainda me lembro da tua Tia Isabel, Silvestre. Os pêsames pelo falecimento dela.


Zeg

Provocação 'aka' Menina Ção disse...

muito bonito, os meus sentimentos e concordo, o amor não vai a lado nenhum...

I.D.Pena disse...

oh que comovente...

Ela era uma pessoa extraordinária, o amor ficapara sempre, assim como ficou expresso neste texto belissimo e sincero.

:)

Nenúfar cor de rosa disse...

sim é isso mesmo! O amor não vai a lado nenhum...permanece e fica. Bem bonito este post! Obrigada pela partilha.