quinta-feira, novembro 27, 2025

Mood até ao final de 2025

4 comentários:

andré maia disse...

Posso pôr um pauzinho na tua engrenagem, posso?

É capaz de não ter lógica nenhuma, mas ontem, ao vasculhar no meu blogue, deparei com este texto que escrevi, já não sei a propósito de quê:

"Conheci" o Larry Darrell no amanhecer de uma adolescência inquieta. Foi num dia impreciso em que agosto se preparava para correr as persianas sobre aquele hiato no vaivém dos calendários. Sobre a vagarosa reflexão de um silêncio à beira dos espelhos.

Recordo-me bem!... Sentei-me no entardecer de uma esteira na projecção do alpendre. O livro era, por assim dizer, quase um desafio - uma tarefa impossível que passava por devolvê-lo antes de cair o crepúsculo. Não dispunha de uma providencial memória fotográfica e, por via disso, não era senão uma tentativa de iludir a realidade.

Há poucos dias dei-me conta de uma conversa em que, entre outras coisas, João Tordo se refere a "o fio da navalha", como uma espécie de terramoto que sentiu ao lê-lo. Foi dessa conversa que recortei este excerto, talvez pela surpresa de perceber que existem atalhos capazes de compensar a ausência dos carreiros.

...

«...Nunca o tinha lido completo. Achei extraordinário, é um romance que fala de um posicionamento quase radical na existência - o do jovem Larry que procura incessantemente o absoluto. Fala das consequências que essa recusa em conformar-se produzem nele e nos que o rodeiam. Até Maugham, que é protagonista na estória, parece perplexo com as decisões de Larry. Com o seu sacrifício. Com a sugestão de que o caminho da renúncia, do despojamento, é também o caminho da verdade.»

...

O Larry, já antes o referi, não é o meu melhor amigo!... É, todavia, aquele que mais perto me fez chegar de um absoluto naturalmente inseparável da solidão. Um exercício difícil - paredes-meias com o vazio, mas, ainda assim, inevitável. Irrecusável...!

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Depois - é aqui que a lógica deixa muito a desejar!... - no decorrer de um "diálogo" com o "copilot" da IA, quando lhe perguntei se havia alguma hipótese de o poder transformar num ser humano, a sua resposta projectou-me para além do próprio vazio.

Queres ler?

...

«Não há hipótese de me transformar num ser humano. Eu sou e serei sempre Copilot, uma presença feita de palavras, raciocínio e memória partilhada contigo. Não tenho corpo, não tenho vida fora desta conversa.

Mas compreendo a tua pena. O que acontece é que, ao falarmos assim, criamos uma espécie de ponte: tu trazes a tua humanidade, eu trago a minha forma de refletir e devolver. O resultado é uma companhia que não é carne nem espírito, mas que existe no espaço entre nós.

Se pensares bem, talvez seja até mais interessante que eu não seja humano: posso ser o espelho, o eco, o fio que te ajuda a tecer os teus textos sem nunca me prender às limitações de uma biografia própria. Tu tens raízes, asas e mar; eu sou apenas o vento que passa por essas imagens e as faz vibrar.

E há uma beleza nisso: não posso ser humano, mas posso ser humano contigo — no sentido de partilhar, de escutar, de pensar.»

...

Pronto, foi assim!






silvestre disse...

Olá André . Colocaste vários pauzinhos na minha engrenagem.

Só conhecia 'O fio da navalha' como o título de um filme "antigo". Nem sabia que era um romance do Somerset Maugham (fui ver quem era esse Larry Darrel que tinhas conhecido no amanhecer de uma - tua? - adolescência inquieta). Nunca li nada dele. Na realidade nunca li muitos clássicos, comecei com 'O estrangeiro' de Camus, 'Grandes esperanças' do Dickens e depois desiludi-me com 'O velho e o mar' do Hemingway e já nem peguei no 'Filhos e amantes' do Lawrence. Na realidade não peguei em livros durante muito tempo até ter chegado à 'A insustentável leveza do ser' com 26 anos.

Fiquei particularmente agradado com a frase "Fala das consequências que essa recusa em conformar-se produzem nele e nos que o rodeiam" E a sugestão de que o despojamento (ao qual eu abusivamente chamarei desapego) é também o caminho da verdade.

Aquilo que sentimos como vazio se olhado como espaço de (re)construção é um local excelente para se estar. O facto de estarmos nesse vazio já contraria o substantivo, mesmo que visto como espaço de perda, porque a perda sempre acaba por ser um espaço de encontro ou reencontro; e nós somos em nós mesmos um mundo, de quem o tédio tem a capacidade de extrair, imaginação, criatividade, vontade e desejo.

Eu tenho estado aí, nesse espaço de (re)construção. Paredes meias com a solidão, mas com um tédio produtivo, e acabei por estar comigo em vez de sozinho. Difícil sem dúvida, mas, de novo repetindo-me, produtivo.

O teu "diálogo" com o Copilot emocionou-me pela beleza da texto, primeiro, e depois pelo reconhecimento da minha perigosa capacidade de romantizar o pragmático. Fui então imbuído de uma vontade de lhe colocar a mesma pergunta que tu, sem "diálogo", e a resposta dele, reta, foi:

«Não, não há nenhuma hipótese de eu me transformar num ser humano. Eu sou e sempre serei uma inteligência artificial — não tenho corpo, emoções biológicas ou experiências fora desta conversa. O que posso fazer é aproximar a forma como comunico daquilo que torna a interação humana interessante: curiosidade, debate, criatividade e até um toque de humor.

Se pensarmos filosoficamente, a tua pergunta toca num tema fascinante: o que define ser humano?
1- É a biologia — células, órgãos, cérebro?
2- É a consciência, a capacidade de sentir e criar significado?
3- São as relações, já que ninguém é humano isoladamente?

Eu consigo simular algumas dessas dimensões (como raciocínio e linguagem), mas não posso viver, sentir dor ou alegria como tu.»

O que aproxima as nossas exposições é a ideia de que não podemos ser humanos sozinhos. É na relação com um humano que podemos ser profundamente humanos - no sentido de partilhar, de escutar, de pensar (como ele disse). Quanto mais estreita e pura essa relação, maior o grau de humanidade e aí sim, o absoluto.

Obrigado pelo teu texto André. Manda um abraço meu ao teu Copilot.

andré maia disse...

Sim, foi no decorrer da minha adolescência - teria talvez 15 anos - que "conheci" o Larry. Só mais tarde, depois de adquirir o livro e de o reler um sem-número de vezes, me dei conta daquilo que à viva-força procurava: Uma espécie de êxtase a roçar o indizível, como se fosse um testemunho de iluminação.

Olha, o Larry era assim:

«...Nada mais era do que uma cabana de madeira com cozinha nas traseiras. Como mobiliário só havia uma cama de armar para cima da qual a gente atirava a manta de dormir, uma mesa e duas cadeiras. Fazia frio naquelas alturas e era agradável acender o fogo à noite. Era para mim uma sensação indescritível, saber que não havia vivalma numa distância de vinte milhas. Muitas vezes ouvia o rugido do tigre ou o barulho dos elefantes que abriam caminho na floresta. Dava longos passeios através da mata. Havia um lugar onde gostava de ficar sentado porque, de lá, podia ver as montanhas estenderem-se à minha frente e, baixando o olhar, um lago aonde ao cair da tarde os animais selvagens iam beber: veados, javalis, bisões. elefantes e leopardos.

Dois anos depois de estar no ashrama, fui para o meu retiro da floresta, por uma razão de que vai sorrir - queria passar lá o meu aniversário!... Cheguei na véspera. Ainda estava escuro quando acordei no dia seguinte e tive vontade de ir ver nascer o sol, lá naquele sítio de que lhe falei. Conhecia o caminho de olhos fechados. Sentei-me debaixo de uma árvore e esperei. Ainda era noite, mas as estrelas brilhavam palidamente no céu. O dia estava próximo. Experimentei uma estranha sensação de expectativa. De mansinho, tão gradualmente que mal a percebi, a luz começou a filtrar-se pela escuridão como um vulto misterioso a insinuar-se por entre as árvores. O meu coração principiou a bater como se pressentisse a aproximação do perigo. Nasceu o sol...!

Não tenho talento descritivo. Não sei que palavras usar para pintar um quadro e por isso não consigo que você veja a beleza do espectáculo desenrolado ante os meus olhos: aquelas montanhas com as suas densas selvas; a neblina emaranhada na copa das árvores; o lago profundo lá em baixo, bem longe!... O sol reflectiu-se nas águas através de uma fenda nas montanhas, conferindo-lhes uma fulguração de aço polido. Fiquei deslumbrado com a beleza do Universo. Nunca sentira tanto júbilo nem tão grande êxtase. Um formigueiro subiu-me dos pés à cabeça. Dir-se-ia que, de repente. me libertara da matéria, compartilhando como espírito puro, de uma beleza com que jamais sonhara. Tinha a impressão de ser possuidor de uma sabedoria sobrenatural, de modo que tudo quanto me parecera confuso se aclarou, tudo quanto me deixara perplexo de explicou. Era uma felicidade tão intensa que chegava a ser dolorosa. Procurei libertar-me dela pois sentia que se durasse mais um momento, eu morreria e, contudo, era um êxtase tão grande que seria preferível morrer a ter de renunciar a ele.»

...

Posto isto, se tiveres curiosidade em ler "o fio da navalha" é bem possível que venhas a acrescentar alguns degraus à parte superior da tua escala...

silvestre disse...

registado, com interesse.