segunda-feira, outubro 11, 2010

A minha avó materna

Ontem a minha avó materna faria 102 anos. Pensei muito nela e como ela foi tão diferente de outras mulheres da minha família pela negativa. Não obstante, tentei sempre compreendê-la ou dar-lhe um desconto pela vida difícil que teve. Não é fácil perder o pai com 7 anos e ter de ajudar a mãe a tratar dos irmãos de 5, 3 e 1 ano. Não é fácil largar a escola e ter de ir lavar roupa para o chafariz público. Não é fácil ver-se enfiada (mais os irmãos) dentro de uma camioneta para ser levada para um orfanato por chantagem de um homem rico que queria casar com a minha bisavó Beatriz (de quem já falei aqui).
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A minha avó materna cresceu ácida (foi sempre uma mulher muito magra, parece quase que foi por issso). Pensava apenas em si e quando estava aborrecida ninguém podia estar feliz à sua volta, o que ela tratava de garantir. Foi muito bonita (como aliás as mulheres todas desse ramo da família). Tinha uns olhos azuis da cor do céu de verão e uma pele muito branca e macia com uma penugem muito curtinha e incolor. Envelheceu muito cedo e castigou muito (mesmo muito) a minha mãe (ainda adolescente) por ser agora a mais bonita da família.
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Tento lembrar-me das coisas boas dela. E vem-me à cabeça que tinha muito jeito para miúdos. Gostava de brincar com crianças. É curioso que nunca tenha sido muito terna com os filhos, com a excepção da filha adoptiva. Era impecavelmente asseada. Cheirava sempre muito bem e na corda havia sempre um número enorme de cuecas estendidas porque sempre que ia à casa-de-banho, lavava-se e trocava de roupa interior. Bebia litros de chá preto e em casa andava sempre de bata.
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Podia ter morrido na nossa casa onde viveu depois da morte do meu avô, mas não. O meu pai tratava-a como se fosse mãe dele, até que descobriu as maldades que ela fazia à minha mãe e pediu-lhe que saísse. Acabou num lar, onde infernizou a vida às colegas, às directoras. Para ver se ainda conseguia castigar a minha mãe, quando partiu uma perna recusou-se a fazer fisio e depois teve de ser operada e a anestesia afectou-lhe o cérebro. Ficou desmemoriada. Sabia quem éramos, mas confundia a televisão com a realidade, pensava que a mãe dela ainda estava viva, o meu avô e outras personagens do passado.
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No lar foi quando começou a gostar de mim. Ela tinha deixado de gostar de mim quando comecei a perceber as maldades que fazia à minha mãe e a defendê-la (a minha mãe achava que não se deve responder mal a um pai ou a uma mãe, coisas da educação à antiga, e ficava sempre calada). Eu morria de pena da minha avó, alguém que estava sempre mal e que afastava toda a gente. Foi essa pena que fez com que eu e a minha mãe a visitássemos no lar com muita regularidade. Fomos aqueles que nunca a abandonaram, ou que tinham mais resistência. Os outros netos iam de vez em quando ou nunca.
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O meu tio dizia que não dava gosto falar com a mãe porque ela estava desmemoriada, não dava para conversar com ela, razão mais que suficiente para não aparecer no lar. Eu ficava 1 hora à conversa com ela. Era fácil. Eu dizia «ó vó, sabe que casou a filha do senhor do fim da rua?» e ela respondia «qual senhor o dono do supermercado?» e eu dizia que sim e deixava que as recordações do passado guiassem a conversa. Eu não fazia a mínima ideia do que estava a conversar ou quem eram aquelas pessoas, mas ela sim e passava um pedaço feliz a conversar. A directora do lar dizia que ela estava sempre de cabeça espevitada a olhar para a janela e dizia «o meu careca deve estar quase a chegar» (eu já rapava o cabelo na altura). E tenho saudades dos sorrisos sem dentes que ela me oferecia quando eu entrava a porta da sala de convívio.
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Morreu com 90 anos. Eu não me esqueço de quando a vi morta no caixão. Foi a primeira vez que a vi com um ar pacífico. Estava muito bonita. A paz dava-lhe um ar muito diferente. Pena que ninguém mais pudesse ver aqueles magníficos olhos azuis.
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Porque escrevo hoje sobre a minha avó? Porque tenho pena por ela e por todas as pessoas que têm ao seu lado gente que as ama, que as cuida e depois desperdiçam tudo isso. Podia ter tido uma vida magnífica, estava rodeada de gente boa, mas teve sempre de fazer a sua guerra. Há pessoas assim, que estão em guerra com os outros toda uma vida, ou estão em guerra consigo mesmas. Eu conheço algumas em guerra consigo mesmas que também desperdiçam o que têm de bom à sua volta. Gostava que a minha avó materna fosse cada vez mais um exemplo único e que a sua história não se repetisse e que todas as pessoas que desperdiçam afectos, acordassem para a vida.

5 comentários:

zehtoh disse...

às vezes as pessoas estão tão ocupadas nas guerras consigo mesmas e acabam por descontar nos outros... e o pior é que muitas dessas pessoas nem se apercebem disso, o que torna mais difícil ultrapassar a situação.

P.S.: este post fez-me lembrar uns livros da isabel allende que li há uns anos, a contar a historia da familia... (a "trilogia" onde se incluia a "casa dos espiritos") :)

silvestre disse...

com uma família como a minha acho que ganhava um dinheirão se resolvesse contar as histórias, em especial as cómicas e as trágicas ;-)

Provocação 'aka' Menina Ção disse...

Há pessoas que não sabem pedir amor. Como não sabem preferem refilar para ver quem fica, quem aguenta, quem suporta. É a maneira que arranjaram para saber quem realmente as ama.

silvestre disse...

@provocação: é triste é que para isso tenham de fazer muito mal aos outros.

Papoila Bem Me Quer disse...

Suponho que haja simplesmente quem não saiba como amar. Fui às lágrimas (e desta vez não foi de rir)!