segunda-feira, abril 02, 2012

A tia J.

A tia J. era muito pequenina, mas diz-se que era a mais bonita das irmãs. Se a beleza não a deixava ficar mal, não foi por isso que ficou conhecida. Não obstante, quando não havia dinheiro para comer em casa era dessa formosura que se fazia valer. Ia à padaria e dizia ao padeiro que lhe mostraria as pernas se lhe desse pão para levar para casa. Hoje em dia mostrar os joelhos não é grande coisa, mas nos anos 30 era um caso sério de ousadia. Já de adolescente mostrava iniciativa e foram a sua determinação e coragem que se tornaram o seu cartão e visita. Chegou à vida adulta e converteu-se numa operária, como as restantes irmãs. A ditadura não lhe agradava e como era espevitada juntou-se ao partido comunista em nome da liberdade. Foi também em nome da liberdade de direitos que foi presa uma ou outra vez, quando se atirava à porrada aos PIDE que estavam a maltratar mulheres na rua. Levava uns sopapos e era libertada. Tomou parte de greves, fingiu que era líder sindical para desviar a atenção daquela que efectivamente era o cérebro por trás da luta operária na fábrica onde trabalhava.

Foi presa mais uma vez para cobrir uma greve. Teve sorte, o Inspector tinha perdido nessa semana uma filha da idade dela, também com um ar espevitado. Teve pena dela, disse-lhe que arranjasse a vida e se deixasse de comunismos. Ela veio para a rua sem os sopapos do costume. Os comunistas não lhe perdoaram, parece que quem vinha para a rua sem levar sopapos eram os bufos. Ela tornou-se uma espécie de lepra para os antigos colegas de luta. Afinal, não levar porrada tinha sido um azar.  Ganhou-lhes raiva. Depois de todas as pauladas e sacrifícios metiam-lhe fama de delatora. Foi a última vez que quis saber de política e de comunistas. Atazanava muitas vezes o meu avô, que nunca deixou de ser comunista, dizendo que ele fazia parte de um grupo hipócrita que não defendia os seus. Quando o meu avô morreu quis a bandeira do partido sobre o caixão e ela pegou-se com a minha avó porque não queria que a bandeira da porra desse partido fosse no caixão do irmão. A minha avó ganhou.

Apaixonou-se ainda muito jovem por pedaço de homem. Já de casamento marcado, aparece uma outra mulher com um puto nos braços, que era a cara chapada do noivo. Desmarcou, disse-lhe que ele tinha um filho para criar e que era com eles que devia ficar. Sofreu muito, mas na sua ideia uma criança precisava mais de um pai do que ela de um marido. Mais tarde conheceu um senhor, um verdadeiro senhor com fortuna com quem iniciou uma relação. Nâo quis casar. Não era apaixonada por ele. A família ficou em polvorosa. Ela seria oficialmente uma perdida. Estes ânimos acalmaram quando ele a colocou a viver na Av. da Liberdade numa casa de luxo com criadagem e motorista. Viajou, conheceu embaixadores, políticos e manteve a sua reputação de rebelde. Sempre dizendo o que lhe vinha à boca. O seu maior orgulho era o facto de nunca ter dito uma mentira, mesmo que a resposta fosse contra si. Eu testei-a várias vezes. Ela não se importava. Acho que até gostava do choque que provocava quando respondia ao que lhe perguntavam directa e sem o menor pudor. Era uma provocadora, diz a minha mãe, com tudo o que de bom e de mau está associado.

A sua fortuna continuou a crescer, dona de uma casa de espetáculo e de um restaurante conhece o amor da sua vida, um jogador de póquer. Um apostador inveterado, mas o amor é o amor. E ela era daquelas que dava o que tinha. O amor, o dinheiro,  a casa. Ficou com muito pouco. Manteve a casa e uma pequena renda. O resto foi embora. Um dia viu-se uma mulher madura e sozinha. Casou com o seu segundo marido, o seu melhor amigo. Era isso que queria, um amigo e alguém que lhe aturasse a boca sem filtro.

Os anos passaram e a tolerância à sua rebeldia e provocação decresceram com a sua conta bancária. A família passou a apelidá-la de inconveniente, ainda mais quando em alguma festa bebia um copo a mais e começava a destilar todo o dinheiro que tinha dado a toda a gente que agora não tinha paciência. Mas ainda havia alguma paciência. Na sua casa, agora antiga e velha, continuava a haver peças de mobília originais de valor extraordinário e as pessoas da família tinham as peças prometidas e alguma paciência ainda teria de existir.

Eu habituei-me a gostar dela. De ser destemida e de provocar os nervos a toda a gente com perguntas que as pessoas politicamente correctas não fazem. Tive pena de morarmos longe e de não fazer parte daquela família que estava sempre perto. Mas a minha mãe nunca quis peças de mobília originais de extraordinário valor. E nunca teve feitio para se colocar em bicos de pés. Gostava muito quando a tia telefonava para dizer que vinha passar o fim de semana. Eu já sabia que isso significava que iria haver pombo guisado com ervilhas para o almoço de domingo e a tia ia comer apenas as asas dos pombos com o meu pai a queixar-se de que ela era um pisco a comer e que assim passava fome. Ela apenas respondia que só fazia o que lhe dava prazer e era as asas que gostava de comer, duas ou três.

A tia J. tinha um espírito feito de betão. Lembro-me quando nos anos 90, já com setenta e picos anos, desatou a discutir com uns polícias que foram visitar o seu prédio armados. Nunca deixou de ter um certo desprezo pela autoridade e por aqueles que supostamente deviam defender-nos e nada fazem. As ruas estavam inseguras com imensos assaltos e eles eram uns cobardes disse-lhes. Ameaçaram-na de que não se calasse a levavam presa. Ela respondeu que só lhe mostravam o cobarde que eram e que não seria a primeira vez.

Um dia recebemos a notícia de que a tia J. tinha morrido. Eu não estava em Lisboa e tive muita pena de não poder ir ao funeral. Tenho uma fotografia da tia J. em casa. Fui eu que a tirei quando tinha talvez uns 19 anos. Ela está sentada no sofá da nossa sala de estar e tem aquele olhar imponente, quase de imperatriz, a desafiar-nos. Quase nem se nota que só tem metro e meio. Sente-se o fogo que ardia dentro dela, o ardor provocatório às convenções e às regras sociais que não servem a ninguém.

Quando eu era adolescente o meu pai dizia «tenho muito medo pelo futuro deste miúdo porque ele não se cala a ninguém, tal e qual a tia J. Um dia ainda se sai mal.». Infelizmente sou uma pálida sombra da tia J., calo-me muito. Há dias em que, como hoje, sinto o meu espírito quebrado. Não sei se ela alguma vez esteve, mesmo que por momentos,  sem esperança. Gostava de lhe perguntar. Como sempre tenho a certeza de que não mentiria. Hoje não consigo pensar em outra coisa senão na tia J., no seu olhar ardente e nos seus punhos sempre prontos a erguerem-se para defender aquilo em que acreditava.

9 comentários:

Pedro disse...

Gostei muito da tia J. e deste texto

Unknown disse...

fiquei agradavelmente supreendido pelo teu texto. E também gosto da Tia J. :)

Piquenina disse...

Li este texto ontem e hoje reli-o.
Foi um prazer, um texto muito bem escrito que resulta numa bela homenagem (não gosto desta palavra mas não me ocorre outra de momento)à Tia J. Acho que entendo o teu sentimento, tb eu hoje calo mais o que em tempos dizia sem problema. Às vezes acho que à custa de levarmos uns sopapos (não é da PIDE, mas às vezes pouco falta) vamos tentando proteger-nos. No meu caso, mesmo calando, acho que não resulta. Há atitudes e comportamentos naturais que acabam por incomodar o mesmo tipo de pessoas (que se repetem em sítios diferentes) o que faz com que os sopapos continuem a acontecer. Calo é certo, mas acho que acabo por demonstrar os valores que me estão no código genético. E isso enche-me de orgulho.
Fiquei a gostar da tua tia J, a minha avó é do "género" e a minha grande inspiração. Tão bom! Estou certa de que ainda continuas muito parecido com a tua tia J, noutros moldes e isso não é necessariamente pior. Aliás esta tua reflexão só mostra que estás bem desperto :) keep going

Piquenina disse...

Silvestre viste o begginers?
Tão bom, tão bem filmado. Andei à procura da crítica aqui no teu estaminé e não encontrei.

Individual(mente) disse...

Gostei bastante do retrato aqui deixado. Ela seria seguramente da mesma opinião. :-)

Célio Cruz | Sweet Gula disse...

Sai um grande like para a tia J. do Silvestre. ;)

silvestre disse...

@piquenina: homenagem foi o que escrevi à Tia Isabel, aqui no blogue. Ontem estava a sentir-me muito em baixo e veio-me a Tia J. à memória e não quis esquecer-me mais, por isso passei para o blogue. E sim, vi o Beginners e a crítica está aí algures no blogue.

silvestre disse...

@piquenina: homenagem foi o que escrevi à Tia Isabel, aqui no blogue. Ontem estava a sentir-me muito em baixo e veio-me a Tia J. à memória e não quis esquecer-me mais, por isso passei para o blogue. E sim, vi o Beginners e a crítica está aí algures no blogue.

Davide disse...

As pessoas Sao Very different mas a historia é a Mesa viva a Tia J. O meu avô e a Rosa !