Era uma vez o Jonas, um miúdo que quando era pequeno era gordo e com voz fininha. Chamavam-lhe todo o tipo de nomes: baleia assassina, baleia azul, moby dick, cetáceo, buda, gordo. Outros miúdos mais velhos às vezes davam uns cascudos quando passavam pelo 'gordo', porque os 'gordos' são de fácil sinalização. Os pais não percebiam nada. Aliás, nem o achavam gordo porque achavam bonito uma criança forte. Ele não se aproximava muito dos rapazes e tal como os restantes miúdos mais desvalidos, 'o burro', 'o feioso', 'o trapalhão', etc. Dava-se mais com as meninas sempre mais complacentes para com a diferença.
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Quando chegou ao 1º ano do ciclo foi o auge dos problemas. Havia um miúdo popular que não gostava dele. Formou-se um grupo contra ele. Um dia não aguentou mais e desatou a chorar na aula de matemática. Foi-lhe dito que se a professora de matemática os prejudicasse que ia sofrer consequências. Os pais só sabiam que tinham um filho muito interessado em livros, com boas notas, que não gostava muito de sair de casa e que ouvia música aos berros. O que eles não sabiam é que ele usava a música para berrar e ver se assim a voz engrossava e se livrava daquele tom de pintainho amaricado. Estava-se bem.
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Sorte dos diabos. Cresceu que se fartou e emagreceu com isso. A voz começou a engrossar e mudou de escola. Chegado à nova escola manteve-se discreto e sempre que podia desviava a atenção para outro rapaz que ainda era gordo e que a voz ainda não tinha mudado. Filha da putice ou espírito de sobrevivência? O segundo. Acalmou por fora. Por dentro continuava medroso e nervoso.
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Voltou a ter problemas quando mudou novamente de escola. Turma só de rapazes. Fim da adolescência. Muitos galos no poleiro. Um era particularmente difícil com ele. A pressão era tão grande que um dia, depois de muitos dias difíceis, foi para a escola a pensar que se o tipo gozasse com ele nesse dia lhe deitava as mãos às boca e lhe rasgava a boca à força de braço. Nunca mais abriria a boca suja para humilhar ninguém. 40 minutos da viagem de casa à escola foram passados com essa ideia fixa na cabeça, a soltar toda a raiva de que ia precisar para o fazer. Chegou à escola a fumegar por dentro. O coração aos pulos da adrenalina. Nada. O outro não lhe dirigiu a palavra nesse dia. Teve sorte ele. Que se lixe o outro. O Jonas podia ter estragado a vida por rasgar a boca do imbecil. Ele é que ia ser o agressor e o outro a vítima. Resolveu mudar de escola, de curso. Abandonar esta gente que detestava e que o iria acompanhar na universidade.
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Mudou de escola, de atitude, de identidade. Correu bem. Notas brutais. Universidade. Sucesso. A identidade dupla funcionava. Uma falsa confiança externa, para encobrir a insegurança. Estruturou-se em torno disto, uma existência quase bipolar agora concretizada e iniciada, ainda, na pré-adolescência. Demorou muito tempo até encontrar um centro. Não era um rapaz feliz. Tentava, mas ninguém pode ser feliz quando estrutura a sua vida para agradar aos outros e não ser rejeitado. Mesmo quando pensava que estava a agir para si, o Jonas estava a agir em prol do que os outros podiam pensar de si. Os outros também não o percebiam, haviam coisas que não batiam certo com a imagem que projectava. Foi sendo alvo de mal-entendidos até entrar em crise profunda. Teve de se reduzir a nada. Teve de parar para pensar. Perceber quem era e aprender a gostar de si.
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Só muito tarde a história se resolveu. O Jonas lá acabou por fazer a sua paz interior, por saber quem era e gosta de si. Não aceita merdas de ninguém. Tem um corpaço, um vozeirão e não aceita merdas de ninguém. É feliz e bem resolvido consigo. Se precisar fecha o punho num segundo (seja em sentido lato ou literal) para se defender e defender quem precisa de uma ajuda. Só há uma coisa nunca conseguiu ultrapassar, o medo de voltar ser gordo. Foi assim que tudo começou.
6 comentários:
eras tu.
Será? Tenho mais era uma vez espalhados neste blog ;-)
Não te conheço, mas sei que eras tu. Isso que escreveste foi sentido com a Alma. Sei do que falas. Nunca fui gordo, mas não era garoto de rua. Sei o que sofri por não saber jogar o maldito futebol. Foi difícil ultrapassar, não sei se consegui na totalidade deixar de funcionar totalmente a pensar nos outros, mas muitas coisas foram resolvidas... outras mascaradas.
Obrigado pelo teu texto.
Zé
Pois é verdade Silvestre mas este tenho a certeza que é pessoal e neste caso transmissível ;) começo a achar cada vez mais que a nossa adolescência deixa marcas na nossa personalidade que só conseguimos abandonar anos muitos anos depois e é giro porque mesmo aqui nos blogues dá bem para perceber muita gente com pequenos decalques de coisas passadas há décadas e que ainda transportam consigo.
Obrigado por teres escrito este texto. Está com uma força inimaginável. Tal como a pessoa anterior comentou, sou eu sei as merdas que passei por também não gostar nem saber jogar futebol...
Muita gente teve "a sua voz fininha e o seu problema de peso", e parece-me que no caso do jonas há uma espécie de justiça, cresceu, emagreceu, ganhou um vozeirão... mas nem sempre é assim, há uns que não crescem, uns que não emagrecem, uns cuja voz não engrossa... mas quando se descobre um amor próprio, quando se perdoa os outros pela sua limitação e incompreensão do peso dos seus actos, então libertamo-nos de quase tudo. Mesmo sem voz, ou esbelteza ou altura.
Mas os mecanismos de defesa não poderão ser apenas físicos, existem outros, pois nem todos emagrecem, crescem e ganham um vozeirão, como por exemplo as mulheres, os homens de média e baixa estatura, etc. Alguns não deixam de ser pretos, maricas, ceguetas, trapalhões, mas podemos divertir com todas essas coisas.
Relembrando o filme precious, mesmo que se aprenda a defender, alguns têm a sorte de não carregar no colo, nos braços, no corpo, eternamente, os resultados desses abusos. E se mentalmente as agressões são mais fortes e perigosas, provavelmente são também as mais possíveis de superação, mesmo que difíceis. Difícil é perder uma perna, ficar cego, apanhar sida, engravidar, ser cortado ou queimado.
Mas cada caso é um caso, e generalizar costuma induzir em erro.
Como li num e-mail que recentemente li, ou ouvi isto da boca de alguém na televisão, estas agressões, bullying e todas mais, estão a acontecer, e não é aqui ao lado, é no nosso país, com os nossos filhos, vizinhos, amigos, familiares, colegas, etc. E nós temos de nos defender, mostrar e exigir respeito, e lutar para que isto não aconteça connosco e com os que nos são próximos. Somos nós, a responsabilidade é de todos nós.
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