Era uma vez o César. O César tinha tudo. O César tinha tudo o que queria, conseguiu tudo o que queria. Mas deixou de conseguir tocar. O César começou a flutuar. Esticava as mãos e desamparava-se num looping, esticava os pés e não conseguia chegar à terra. O César não conseguia focar. Não se lembra bem de quando foi a última vez que teve um objectivo definido. Não deixou de interagir com tudo e com todos. O César é de todos. Não se cansou de conhecer mais e mais coisas, mais e mais pessoas. Mas no fim do dia o César deixou de encontrar um propósito. Deixou de se lembrar daquilo que não queria. Às vezes, saber o que não se quer é a coisa mais preciosa que alguém pode ter. É como uma protecção, uma espécie de bússola que nos impede de trilhar o caminho que não nos serve. O César deixou de saber e continuou nesse esquecimento de que não sabia. Ele soube em tempos, mas deixou de saber. No meio de tantas coisas e de tanta gente perdeu o contacto consigo. O César começou a adoecer, fisicamente, socialmente... Os pés reclamaram-lhe solo, a mente reclamou-lhe constância. Tudo funciona quando a doença é subtil, quando a doença é num corpo dentro do corpo ou num corpo fora do corpo que nada mais é que o mesmo corpo, sempre o mesmo corpo. O César não deixou de funcionar, não deixou de ser um balão sem fio. Um balão extraordinário que animava todas as festas. Sempre no ar, sempre a girar, sempre de mão em mão, sempre em movimento por todo o lado e para lado nenhum. O César assim viveu nos últimos tempos, em êxtase. Embriagado pelo movimento. Mas cansado, profundamente cansado por não perceber para que girava, cansado por não saber para que corria. Os dedos do César ganharam ferida, como que a dizer-lhe para não correr mais. Não corras. Pára César. Pára! Os pés doiam-lhe e ele parou à medida que foi deixando de suportar a dor. Porque lhe doia não queria estar com ninguém. E só parado, e sozinho, percebeu que não tocava o chão. Que tinha deixado de ter raíz. Tinha perdido a sua raíz e sem raíz ninguém consegue viver. Não há alimento. Não há energia vital. Pousou os pés no chão. Deixou-se ficar quieto, muito quieto. Há muito tempo que não sentia aquilo em que tocava. Veio-lhe à cabeça tudo aquilo que não queria.
2 comentários:
Não sei se é um César real, mas está muito bem escrito...
Sempre que escrevo um «Era uma vez...» é sobre pessoas que existem. Se tiveres curiosidade faz um search por Estela, Sara e Marco. ;-)
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